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A obsolescência da resiliência

Neste artigo Luiz Fernando discorre sobre gestão e mercado, e como a resiliência está envolvida no tema

Passados 10 ou 15 anos de um tempo em que abríamos o jornal e rapidamente éramos informados sobre os processos de compra, venda ou fusão de empresas, sobretudo na área financeira, hoje nos dizem que algumas alterações aconteceram no mundo corporativo.

Naqueles dias já se abriam as páginas da internet para ler notícias, e não o jornal físico, que foi minguando até chegar à realidade de hoje. Nos processos que aconteciam nos bastidores das empresas, a competência “resiliência” talvez fosse a característica mais procurada nos profissionais que estavam com suas cabeças a prêmio, ou porque foram comprados ou porque foram vendidos.

Neste ponto, recorro ao Dicionário Houaiss para entender o significado e a etimologia da palavra “resiliência”.

substantivo feminino
1 Rubrica: física.

propriedade que alguns corpos apresentam de retornar à forma original após terem sido submetidos a uma deformação elástica.

2 Derivação: sentido figurado.
capacidade de se recobrar facilmente ou se adaptar à má sorte ou às mudanças.
Etimologia
ing.
resilience (1824) ‘elasticidade; capacidade rápida de recuperação’.

Percebam que o significado corporativo acabou se valendo da realidade empresarial para criar um sentido absolutamente adequado ao que se queria exprimir. Naquela ocasião, o que prevaleceu foi o sentido figurado, apesar de o significado da palavra trazer a ideia de voltar à forma original, e não de ter a possibilidade de juntar o que de melhor existia em cada modelo e transformar tudo isso com uma nova perspectiva.

Mas, Luiz, o que você está querendo dizer?

Nada de muito novo. Mas quero ressaltar como, mais uma vez, estamos tratando de reembalar um conceito, que nem tão antigo é, com uma nova roupagem e vendendo um pão no mínimo requentado, pois, se olharmos o verbo relativo ao substantivo feminino, “resilir”, este tem o significado de rescindir, revogar. Exatamente o que não buscávamos nos profissionais 15, 20 anos atrás. Ao contrário, quando apontávamos para alguém e dizíamos que ele tinha um grande poder de resiliência, estávamos elogiando o profissional, no sentido figurado que a palavra assumiu.

Continuando meu raciocínio. 

Hoje, essa competência tornou-se um artigo que não parece fazer muita diferença e, de certa maneira, acaba refletindo aquilo que o primeiro significado trazia. O que se procura hoje é aquela coisa de gostar de desafios, estar pronto para mudanças e sempre à procura de algo novo, diferente, se possível envolvendo muita tecnologia.

Lembro que, nessa mesma época, quem falasse de CRM em uma reunião era rapidamente conduzido a um cargo de destaque no marketing das empresas.

Saber criar e enviar malas diretas para as pessoas certas, na hora certa, era algo que, graças a um sofisticado sistema preditivo, fazia com que enviássemos e tivéssemos um baita resultado de 1%.

Vejam, hoje, se soubermos manejar as redes sociais de forma inteligente, certamente conseguiremos um resultado muito mais expressivo.

Guardadas as devidas proporções, antes que os tecnólogos me crucifiquem, nessa modalidade de uso dessas redes não podemos dizer que elas são um sistema “preditivo” que, bem manejado, oferecem resultados bem mais consistentes?

A grande questão é que, como temos pressa de entender de tudo (uma mensagem no Instagram, quando prende a pessoa por 10 segundos, é muito boa), fica aquela pergunta: “Nossa, você não tem Instagram??? Não pode ser. Você TEM que ter.” Mas para quê? De que me serve? Eu, por exemplo, só uso essa rede de forma profissional. Nada de mostrar a minha vida pessoal. Quem quiser conferir, fica o convite @luizfernandocoelhooficial.

A esta altura, são muitos os conceitos que no senso comum ficaram obsoletos, mas que na verdade apenas sofreram um processo de face lifting, para que pudessem ser comprados novamente como novidades.

Para mim, resiliência, no sentido figurado, onde existe um processo de transformação a partir da nova situação existente, continua sendo uma competência admirável.

Ouso dizer, e como uma forma de enaltecer os repentistas – que os deixemos em paz –, não fiquem repetindo nas entrevistas para novos cargos, a fim de disfarçadamente se autoelogiar, a frase “Eu adoro desafios”. Ora, quem gosta de desafios são os repentistas, que desfilam sua arte de modo sagaz e muito criativo.

Um dos grandes exemplos de resiliência que conheço na história é o de Beethoven. O compositor acreditava que a música não servia apenas para o lazer e sim para expressar ideias.

Na Quinta Sinfonia, os quatro acordes iniciais a tornaram extremamente conhecida do grande público, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial. Afinal, os três tempos curtos somados ao longo significavam, no Código Morse, o “V” de “vitória”.

Já em sua Nona Sinfonia, que levou seis anos para ser terminada, composta quando já estava surdo, mas com a habilidade de não precisar ouvir o som das notas, pois as tinha de cabeça, Beethoven mudou o conceito de sinfonia, obra que é estritamente instrumental, ao inserir um coro e solistas no último movimento. Para isso, escolheu o poema “Ode à Alegria” (também chamado de “Hino à Alegria”), do poeta alemão Friedrich von Schiller.

Além disso, em algumas de suas composições, a orquestra sinfônica precisou ser modificada, acrescentando-se à sua formação mais alguns instrumentos. Que maravilha!

O conceito de resiliência apresentado na obra de uma só pessoa, que, sempre dentro daquilo que se propôs a fazer na vida – ser um compositor, maestro –, acabou agregando, e não enterrando e requentando outro conceito. A verdadeira recriação baseada na possibilidade de ser resiliente, mesmo surdo.

Antes que eu me esqueça, a Nona não teria a menor chance no Instagram: ela tem 65 minutos de duração. Talvez os três primeiros compassos da Quinta pudessem ter alguma audiência.

Calma, ninguém precisa ficar zangado. Mas que ser resiliente ficou obsoleto, ah, disso eu tenho certeza.