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História de superação?

Esses dias eu me peguei pensando onde as pessoas brancas estavam quando lá em um dos meus primeiros trabalhos, ainda como telemarketing, um chefe me disse que eu não teria futuro se eu desistisse de trabalhar com ele.


Pensei no que eu poderia escrever aproveitando esse lugar tão importante e eu diria histórico. Pois não só estamos fazendo uma grande mudança em nossas atitudes desde George Floyd, como também estamos mantendo essas ações. 

Pelo menos é o que parece ao notarmos, por exemplo, essa semana de Ocupação Promoview por pessoas pretas. Aqui vocês nos viram falar sobre nossos trabalhos no mercado e como enxergamos ele dentro de nossas perspectivas.

Esses dias eu me peguei pensando onde as pessoas brancas estavam quando lá, em um dos meus primeiros trabalhos, ainda como telemarketing, um chefe me disse que eu não teria futuro se eu desistisse de trabalhar com ele. 

Na época eu vendia jornal por telefone e foi um dos muitos trabalhos abusivos que tive. Você já foi ou atualmente trabalha com telemarketing? Se sim, você entende o meu sentimento. Não sei se algo mudou desde quando trabalhei nesse lugar, vai pra quase 11 anos ou mais. 

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Foi um dos primeiros empregos formais que eu tive. Na época, eu ainda não fazia faculdade, estava esperando a segunda chamada do Prouni, pois na primeira eu não tinha passado. 

Até chegar naquele trabalho eu já tinha sido auxiliar de transporte escolar (profissão do meu pai até o momento “ou até quando essa crise permitir) e trabalhei em salões de cabeleireiro (aprendi as habilidades da profissão em uma ONG na minha adolescência). Todo esse caminho acabou me levando até um curso de, vejam só, administração de empresa, e, em seguida, até o telemarketing. 

Eu sofri muito com hora pra entrar e sem horário para sair. Cada um tinha um limite de tempo para usar o banheiro. O almoço algumas vezes era gelado, pois não tinha micro-ondas para todos esquentarem suas marmitas. 

Quantas experiências tive nessa profissão: vi pessoas desmaiando, vi pessoas chorando desesperadas pois aquele emprego era a única forma de manterem sua renda em casa. E eles sabiam disso, abusavam disso e nos oprimiam. Esse trabalho ficava na Av. Santo Amaro, aqui em São Paulo. Um bairro supernobre que veio fazer parte do cenário dessa história que conto a vocês. 

O que eu queria na época? Ser aceito como um homem gay pelos meus pais, por Deus e pela igreja ou ter condições financeiras de, mesmo não sendo aceito pela minha família, construir o meu próprio futuro. 

Não admitia ter que sofrer por ser quem eu era, mesmo temendo o que poderia me acontecer. Acho que foi e tem sido essa força que tem me trazido até aqui. 

Lembro-me claramente do dia que decidi pedir minha demissão. Eu tinha uma certeza que poderia começar a faculdade a qualquer momento se alguém desistisse do curso. Eu era o próximo da lista. Só que naquele momento eu não conseguia mais estar ali pra guardar dinheiro e conseguir pagar todas as despesas da faculdade. 

Ouvi do meu superior que com trinta anos eu estaria casado com minha esposa, com vários filhos e infeliz se eu realmente saísse de lá e que eu também estava perdendo a oportunidade da minha vida ali, pois eu era um bom vendedor. 

Quase me esqueci de falar, eu era um bom vendedor. Acho que de alguma forma essa profissão me ensinou a contar uma boa história. Aquele lugar me adoecia, me fazia passar mal, me tirava toda paz, me torturava ao ponto de algumas vezes ter ido ao banheiro escondido após muito implorar. Era horrível, gente. E acreditem, ainda tem muitos lugares como esse. 

Mesmo assim, eu saí de lá. Mesmo contrariando meus pais. Mesmo contrariando até mesmo a igreja que cresci, que de alguma forma me moldava a aceitar tudo que sofria.

Esses dias eu pensei muito sobre o que vivenciei com essa criação tão conservadora e castradora. Tudo que eu vivia tinha nome e eu não sabia quais eram. Era racismo e desigualdade socioeconômica. Naquele dia eu não baixei minha cabeça na frente dele, mesmo sabendo que eu podia me enrolar financeiramente se caso fosse chamado para faculdade. Algo me dizia que eu ia conseguir. 

Me despedi dos meus amigos aos prantos. Lá não foi o único lugar que trabalhei com essa profissão, mas de alguma forma essa experiência marca uma mudança. Saí do prédio, fui andando pela calçada segurando o choro e cheguei no cruzamento com a Avenida Professor Vicente Rao pra pegar meu ônibus. 

Como ficava um ponto antes do final, consegui ir sentado. Coloquei minha cabeça na janela e comecei a pensar em tudo de ruim que estava acontecendo na minha vida. Naquele momento eu queria muito mudar minha vida. Queria entender quem eu era. Eu sabia que eu era gay, mas não era assumido. 

Eu tinha o sonho de fazer uma faculdade pra trabalhar com aquilo que a minha professora de artes no colégio disse que eu tinha vocação. “Samuca, você já ouviu falar em Design Gráfico?”, ela perguntou. “Não professora, o que é?”, questionei de volta. Eu queria fazer alguma coisa que me desse um sentido, porque eu não queria que minha vida se resumisse ao fato de eu ser um homem negro, gay, que foi expulso de casa, da igreja e não tinha amigos. Pelo menos era o que eu imaginava que iria acontecer. 

Se soubessem que para além de grandes profissionais vocês têm na equipe pessoas com histórias tão diversas, vocês ficariam surpresos e entenderiam por que somos tão criativos. 

Voltando à história, eu chorei, chorei o percurso inteiro. Não me importei se estavam me olhando. Estava com raiva da minha vida. Estava com raiva por tentar e nunca conseguir. Cansado de ter que me provar e mesmo assim ter que trabalhar em lugares que me humilhavam e tiravam toda a esperança que eu tinha de ter uma outra vida.

Cheguei em casa muito revoltado e falei com minha mãe o que tinha feito. Ela se preocupou principalmente porque também entendia que a possibilidade de eu entrar na faculdade era grande. Nós estávamos muito confiantes. Minha mãe e meu pai iriam colocar o filho numa faculdade. No mesmo mês fui informado que tinha conseguido a vaga para fazer o curso de Design Gráfico, projetos, produtos e comunicação visual. 

Pra chegar até aqui, isso que contei não foi nem o começo. Tenho uma história que se assemelha a de muitos outros brasileiros e brasileiras, sejam eles publicitários ou não. Não é uma história de superação, pois ao longo desse caminho trabalhei com pessoas que sequer imaginavam essa realidade. 

Se eu tivesse que superar algo, todos com quem eu trabalhei se identificariam com essa história. Sei que muitos não fazem ideia do que é conviver com abuso moral, racismo, LGBTfobia, preconceitos dos mais diversos e ainda ter que ouvir que temos uma história de superação. Não, gente. 

Isso que passei nem de longe é algo restrito àquela área de atuação que eu desempenhava na época, mas é a realidade da grande parte dos trabalhadores brasileiros. 

As mulheres ainda seguram a bolsa quando entro no elevador e não importa quantos livros eu lance pela Companhia das Letras. Na rua, pra branquitude e para o Estado, eu sempre serei suspeito.

Chegar até aqui para dizer que pessoas como eu podem estudar, trabalhar, se entregar, lutar, mas parecem nunca ter seus trabalhos valorizados. Parece que é chover no molhado. Mas tem coisas que não podem tirar da gente. Eu quero dizer o que aprendi essa semana com uma mensagem que recebi de um seguidor mencionando a querida drag queen Rita Von Ruth: “Se está cansado, descanse mas não desista!”.

Uma história usada de forma estratégica pode virar blog, livro, palestra, vídeos no YouTube, criação de conteúdo nas redes, consultoria de diversidade, programas de entrevistas, música e o que mais eu quiser. Sabe o que é isso? Bagagem, vivência, conhecimento empírico, vontade e tudo isso somado a investimentos e a aliados me trouxe até aqui. 

Eu não sou o único negro gay e de origem periférica na publicidade. Existem muitos que ainda estão esperando a oportunidade de mostrar o seu talento. Se continuarem com essa mentalidade, vocês continuarão valorizando pessoas medíocres que sempre tiveram privilégios e perdendo grandes talentos por aí.

O mercado tem a oportunidade de se redimir agora e depois dessa crise investindo em diversidade e inclusão. A consciência e a aceitação das pessoas aumentam a cada ano. E por mais que achemos o contrário, diversidade no mercado de trabalho não é modinha. É recomendação da ONU para as empresas. Quem não o faz, já sente os impactos. 

“Eu, Samuel Gomes, homem negro gay, estreei minha carreira literária em 2016 com a obra “Guardei no Armário”. No mesmo ano, criei o canal de YouTube de mesmo nome. Fui eleito Top Voices 2019 pelo LinkedIn e hoje atuo como consultor, apresentador, criador de conteúdo, escritor e palestrante. Participo da Ocupação Promoview.”