Qual a diferença?

O que é a "festivalização" de eventos

Existem diferenças bem explícitas no que faz um evento ser um festival ou mais uma ocasião corporativa — e há espaço para ambos existirem

O pós-pandemia trouxe à indústria de eventos uma silenciosa — porém notável — tendência: ocasiões corporativas e de trade vêm sendo frequentemente batizadas (ou renomeadas) “festivais”. Essa premissa tem nome: “festivalização”. E ela busca infundir em congressos e feiras mecanismos de entretenimento e engajamento, típicos de eventos lúdicos como um Turá ou Lollapalooza.

O objetivo é claro: em um mercado em recuperação, um nome grandioso e cinematográfico faz sentido. Mas, como questiona a CEO do Promoview, Cindy Feijó, em sua postagem no LinkedIn: essa “festivalização” chegou longe demais? Estaríamos vivendo um novo formato ou apenas uma nova embalagem?

O que faz um festival, de fato, ser um festival?

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Imagem: FreePik/Reprodução

Em seu artigo acadêmico de 1987, pela Universidade de Brown, o antropólogo italiano Alessandro Falassi definiu “festival” como “uma ocasião social recorrente periodicamente, na qual, através de múltiplas formas e uma série de eventos coordenados, todos os membros de uma comunidade participam direta ou indiretamente, em vários graus“. Ele enfatiza que essa comunidade é unida por laços étnicos, linguísticos, religiosos, históricos e compartilha uma cosmovisão.

Nesse contexto, embora eventos como Lollapalooza e The Town se alinhem à visão de Falassi, celebrando a música, a arte e uma identidade cultural específica, a comparação com eventos corporativos como o Universo TOTVS (aqui, apenas como um exemplo pois, fazendo a mea culpa, não tem “festival” no nome) revela nuances.

Ambos podem ser tradicionais, ter públicos engajados e valores reconhecidos. No entanto, o cerne da distinção reside no propósito e na natureza da comunidade. Para Falassi, o festival transcende o comercial. Ele opera num “tempo fora do tempo”, com ritos que vão desde a purificação e a inversão simbólica de papéis até o consumo conspícuo e competições que reforçam mitos e valores coletivos. O festival existe para reafirmar a identidade e vitalidade de uma comunidade, celebrando preferências em comum e reforçando essa premissa em uma participação orgânica.

Um evento corporativo, por sua vez, tem a premissa de engajar clientes, gerar negócios e criar capilaridade comercial para marcas. Sua “comunidade” é uma rede de interesses profissionais, não um grupo com uma cosmovisão cultural profunda.

Definir “festivalização” é complexo

É impossível negar que muitos eventos corporativos hoje atingem magnitude similar a festivais, com ativações e experiências que buscam o engajamento. Festivais musicais, por outro lado, adotam vertentes corporativas, como o “Learning Journey” do The Town ou o “Unlock” da CCXP, voltados a parceiros de negócio.

O desafio está em que, ao usar a palavra “festival”, o conteúdo do evento muitas vezes se mostra desalinhado ao seu significado original. Um exemplo é a própria Volkswagen e o seu “Volks Festival“.

O evento era originalmente voltado à comunidade de fãs, com test drives e exibições de carros. Contudo, em certo ponto, a própria marca promoveu o evento, efetivamente transformando-o em um saldão de vendas. Isso desvirtuou o propósito de experiência e comunidade dos entusiastas? É difícil dizer, mas a última edição trazia, ao mesmo tempo, caráter comercial e lúdico, com ativações destinadas a quem só estava ali sem a intenção de comprar algo.

Outros eventos que também flertam com essa brincadeira, como o Festival IPA Day ou o São Paulo Coffee Festival, são focados na experiência de produto — cerveja e café, nos exemplos citados. E mesmo a presença de entretenimento é algo secundário, o que levanta ainda mais dúvidas quanto à definição da palavra.

Há espaço para ambos, mas opiniões dividem a indústria de eventos

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Imagem: FreePik/Reprodução

No fundo, fãs e públicos buscam experiências gratificantes e senso de pertencimento. Comunidades como a das corridas de rua, por exemplo, demonstram essa coesão e são capitalizadas por marcas esportivas como adidas ou Asics, que criam eventos com forte apelo. No entanto, essas marcas não os chamam de “festivais”. Por quê?

Como a CEO Cindy Feijó aponta, há um risco de “gerar uma expectativa que nem sempre é correspondida” ao usar o termo “festival” indiscriminadamente. Afinal, se todo evento se diz um “festival”, então o conceito em si não corre o risco de se tornar vazio?

Pesquisas como o Mapa dos Festivais indicam que articipantes de grandes eventos culturais hoje buscam consumir experiências e ativações, não apenas o line-up. Isso sugere que a “experiência” é chave em ambos os universos. Eventos corporativos têm recorrência e geram comunidades de entusiastas de produtos. Eles investem pesado em ativações e engajamento. Mas, a motivação principal para a participação em um evento de trade ainda é a geração de negócios e a capilaridade comercial.

A “lei máxima” do mercado diz: “se algo existe, é porque tem quem compre”. Mas a “festivalização” nos eventos corporativos levanta uma questão essencial para o futuro da indústria: o seu evento é algo que faz os visitantes pensarem em colocá-lo “religiosamente” na agenda do ano seguinte, como parte de sua identidade e ritos? Ou é, primariamente, uma transação comercial com embalagem mais atraente?

A resposta a essa pergunta é cada vez mais complexa. Ela determina se estamos planejando um evento de trade… ou um verdadeiro festival.

Rafael Arbulu

Redator

Jornalista há (quase) 20 anos, passeando por editorias como entretenimento, tecnologia e negócios, sempre com um olhar crítico e praticamente nostálgico. Por toda a sua carreira, sempre buscou detalhar desde as tendências mais disruptivas do mercado até as curiosidades culturais que desafiam a lógica do "só porque é novo, é melhor". Fã de vinis, cervejas especiais e grandes sagas literárias, ele traz para os textos doses generosas de referências pop – mas sem esquecer que, no universo corporativo, até o lado B precisa fazer sentido.

Jornalista há (quase) 20 anos, passeando por editorias como entretenimento, tecnologia e negócios, sempre com um olhar crítico e praticamente nostálgico. Por toda a sua carreira, sempre buscou detalhar desde as tendências mais disruptivas do mercado até as curiosidades culturais que desafiam a lógica do "só porque é novo, é melhor". Fã de vinis, cervejas especiais e grandes sagas literárias, ele traz para os textos doses generosas de referências pop – mas sem esquecer que, no universo corporativo, até o lado B precisa fazer sentido.