Que estamos vivendo a era da espionagem política, corporativa e pessoal não é novidade. Entidades “anônimas” com sistemas cada vez mais sofisticados estão transformado dados que deveriam ser sigilosos, como os hábitos de consumo de um cidadão, em moeda de troca para negociações que sequer podemos imaginar.
Você pode cair no golpe clicando um link na internet ou não fazendo nada de especial para além de usar seu cartão de crédito ou seu celular. Mas, um outro golpe intrigante vem chamando a atenção no mundo dos negócios.
Trata-se do anonymous client. Não, não estou falando de uma nova versão do famoso processo de “cliente oculto”; nem dos impessoais sistemas de cadastramento para os leilões de concorrências, em que se conversa com um software que sabe mais sobre a sua empresa que o seu gerente financeiro. E, tampouco, do hacktivismo que promove a liberdade de expressão no mundo virtual de forma anônima.
Estou falando de gente, de carne, osso, e, cabe registrar, uma boca bem grande para solicitar ações de ativação, ações promocionais ou campanhas de comunicação com objetivo, prazo de implementação, público e até budget definido, sem contar algumas intimidades corporativas que acabam vindo junto mesmo sem você perguntar.
Mas o problema não está aí.
A empresa liga para você, envolve a sua agência em uma concorrência em que os demais players não podem ser revelados, pede uma proposta com certa urgência, pergunta como você entende a marca e o que pensa para o futuro, e solicita alguns materiais e ações para visualizar o entendimento do briefing além, é claro, de um orçamento.
Você sai pleno de dados e com vontade de resolver, de ganhar o cliente. Então começa todo um protocolo complicado para conseguir agenda, sala, disponibilidade das pessoas para poder receber a sua proposta, o que dá uma certa valorização no processo.
No dia programado, você faz uma apresentação com tudo o que foi solicitado para encantar o cliente, que recebe os materiais de forma simpática e positiva. Ao final, fica programada uma próxima reunião para feedbacks, depois das avaliações internas com todo o board.
Aí começa o golpe.
Quando você liga para reagendar, a pessoa não atende. Quando você consegue conversar, a pessoa desconversa. Quando pergunta sobre a urgência, ouve que a ação foi postergada por tempo indeterminado. Isso quando a pessoa ainda está na empresa. Que tal esta pérola verídica: “Passei o briefing de vingança, pois descordo de tudo o que a empresa vem fazendo. Depois da apresentação, pedi as contas. Não estou mais lá”.
Entendeu qual é a do anonymous client?
Ele não assume a responsabilidade por seus atos. Faz que não foi ele que te procurou, nem que passou os dados para você, nem que estava em uma reunião presencial vendo tudo o que você fez. E quem garante que ele não ouviu o que você disse, não absorveu as suas estratégias, não se inspirou com as suas soluções, não usou o seu orçamento de comparativo?
Se à luz da etiqueta a situação já é questionável, o que dizer sobre a ética? Onde estão os valores, o respeito, a consideração pelo próximo, por seu dinheiro, e, principalmente, por seu tempo?
Seria a falta de comprometimento das empresas e daqueles que as representam? A ‘adolescentização’ das equipes, estimulando interlocutores jovens demais que, mesmo com boa formação acadêmica, ainda são despreparados para as relações pessoais? Ou é a pobreza de espírito tomando conta das relações negociais?
Uma possibilidade, inspirada em um raciocício do sociólogo Zigmunt Bauman, está na complexidade em se estabelecer vínculos entre pessoas na era das redes efêmeras de relacionamento.
Pode ser.
Mesmo assim, não justifica a impunidade corporativa.
Desejo ao mercado que seja gifted, que seja dadivoso, que estabeleça trocas saudáveis e produtivas em todas as suas relações, ações, conquistas.
Que as marcas se comprometam em fazer a diferença não apenas em seus shares of market/mind&wallet, mas na construção de um mercado melhor para se consumir.
E que todo mundo fique esperto e denuncie quando uma empresa cometer atitudes como estas.
Hei: mostra a sua cara. Chega de anonymous!