Experiência de Marca

“Loja de roupas” para moradores de rua mobiliza Brasília

Conhecido como The Street Store Brasília, o evento guarda muitas semelhanças com uma loja de comércio tradicional, pelo número de voluntários e pela logística. A grande diferença é que, em vez de serem vendidos, os produtos são doados a pessoas em situação vulnerável

Há um ano, uma jornalista, uma agrônoma e duas estudantes resolveram se juntar em torno de uma iniciativa que surgiu em 2014 na Cidade do Cabo, África do Sul, e criar uma verdadeira loja de roupas, sapatos e acessórios nas ruas da capital federal. Conhecido como The Street Store Brasília, o evento – que chega este ano à segunda edição – guarda muitas semelhanças com uma loja de comércio tradicional, pelo número de voluntários e pela logística. A grande diferença é que, em vez de serem vendidos, os produtos são doados para pessoas em situação vulnerável ou moradores de rua.

“É muito trabalho, várias noites sem dormir, imprevistos, mas, quando chega o dia e a gente vê a expectativa e a gratidão das pessoas e como é a vida de cada um que passa por aqui, a gente esquece todos os perrengues”, explicou emocionada uma das organizadoras do evento, Marcela Nóbrega. Marcela é a jornalista do grupo que trouxe a iniciativa africana para Brasília.

Segundo ela, todos os números quase dobraram ou triplicaram desde a primeira vez que fizeram o evento, no ano passado, sempre mobilizando a comunidade da cidade por redes sociais. “Arrecadamos mais de 11 mil peças, sem contar os acessórios. No ano passado, com tudo, foram 6 mil peças. Tudo isso foi mobilizado pelas redes sociais e distribuímos pontos em toda a cidade para receber as doações. Mais de 18 mil pessoas estão nos acompanhando pelo Facebook e ajudando na iniciativa”, disse.

Marcela ainda contou que, durante os quatro treinamentos de voluntários, além de preparar as pessoas para atendimento, foi feita a triagem das peças para separar por tamanho, sexo e identificar o que precisava ser lavado ou consertado. “Afinal, a palavra-chave aqui é dignidade, e as coisas precisam estar em bom estado.” Em agosto de 2015, o projeto atendeu a 550 pessoas e a expectativa este ano é que 700 sejam contempladas. Este é o número estimado de público que chega, em escalas, em ônibus fretados a partir de financiamento coletivo também pelas redes sociais. “Além das pessoas que vão passando por aqui ou ficam sabendo da iniciativa e acabam vindo”, completou a jornalista.

Hoje, as quatro amigas já contam com reforço de mais três pessoas que se alinharam ao projeto. A psicóloga Ana Gama Dias, que trabalha em uma coordenação de programas voluntários da Confederação Nacional da Indústria (CNI), foi uma das que engrossaram a equipe. “Meu trabalho é buscar ações que já existem e que nossos funcionários podem participar. Quando vi essa ação achei que pudesse ajudar com nossos fornecedores e trabalhadores”, disse a psicóloga. Além da mão de obra, Ana conseguiu garantir, pela CNI, a tenda onde está ocorrendo o evento.

Pelos chamados em redes sociais, 120 voluntários aderiram e começaram os trabalhos às 10h, em frente à Biblioteca Nacional, no centro da cidade. A ação segue até as 16h. Quem chega ao local já é recebido em um estande com comidas e depois entra na fila para as “compras” que são orientadas por um dos “vendedores” voluntários que acompanham cada passo: desde a escolha de uma camiseta, sapato, bermudas e acessórios de acordo com o tamanho e gosto do cliente.

Francisco Lima, 20 anos, mora nas ruas desde os 8 anos de idade e chegou ao local com os pés descalços. Saiu com um tênis e uma sacola com jeans, camiseta e bermuda ao seu gosto. “Um amigo me avisou [do evento] na rodoviária, onde eu moro. É muito bom ter isso aqui”, disse, com olhar ainda admirado e um pouco perdido diante da iniciativa de que participou pela primeira vez.

A mesma notícia chegou para Emanuel de Freitas Ribeiro que, desde que perdeu o emprego de padeiro e confeiteiro, há seis meses, teve que ir para a rua e ainda não vê perspectivas de mudanças. Ele tenta ir para Rio Grande do Norte, onde amigos prometem ajudar nesta nova fase, mas admite que, na rua, acabou se entregando ao alcoolismo. Hoje, disse que vai tentar retomar a vida. “Estou mais animado e quero tentar ir para Natal de novo. Consegui roupa e sapato aqui”, disse, sorrindo ao olhar para o espelho, enquanto cortava o cabelo e a barba gratuitamente por especialistas de um salão de beleza de Brasília que também aderiu ao projeto.

Foi a dona da casa em que Anália Rocha trabalha duas vezes por semana que a avisou do evento. Ela era trabalhadora doméstica, mas teve que aceitar fazer diárias para conseguir manter alguma renda quando a situação se complicou para a empregadora. “É a primeira vez que venho. Vim lá de Planaltina de Goiás [a 60 quilômetros de Brasília] só para o evento, com meu neto Eric e meu filho. Eles também vão tentar encontrar alguma coisa. Ajuda muito”, disse. O neto ainda aproveitou o estande de uma outra organização que participa com pintura de rosto nas crianças e brincadeiras.

Assistência jurídica

Depois das compras, brincadeiras e com a barriga cheia, muita gente ainda consegue aproveitar para tirar dúvidas relacionadas a direitos. Durante todo o dia, 150 advogados vão se revezar no atendimento à população em um espaço criado pela Comissão de Ciências Criminais da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em Brasília. Ana Izabel Gonçalves de Alencar, que integra o grupo e é responsável pelo programa de Prevenção da Violência com Ação Social, contou que, só nas primeiras horas do dia, orientou pessoas com problemas para receber o valor real de aposentadoria e mais de dois casos de divisão de bens e separações de casais.

“São pessoas que não têm nenhuma ideia do que precisam fazer e que ajuda podem ter nesses casos. O marido de uma das senhoras que atendi está ameaçando vender a casa que ela ganhou do governo. É a única coisa que ela tem e, além disso, casas doadas não podem ser vendidas. Ela agora vai à Defensoria Pública, e um advogado de lá vai preparar a ação para evitar isso”, disse.

Em 2015, Ana Izabel atendeu inclusive refugiados do Haiti que chegaram à capital federal sem saber o que deveriam fazer e a que tipo de direitos poderiam a ter acesso. “Estavam vivendo em situação de rua porque não sabiam nem que tinham que tirar a carteira de refugiado que garante alguns direitos”, afirmou. Além dos advogados, a equipe da OAB-DF ainda é composta por um assistente social, um massagista e uma enfermeira que afere pressão e taxa de glicose. Alunos de uma faculdade de medicina da cidade também reforçam o atendimento à saúde.