Experiência de Marca

Em Cannes, os júris que não julgam a realidade

Fui, e ainda sou, criticado por muitos que acham que meu discurso é personalista e de visão reacionária aos princípios da criatividade. Nunca o foi. A verdade é que o mundo mudou, o consumidor também, o mercado idem.

Sempre disse aqui que as premiações precisam rever alguns de seus conceitos, tanto na escolha de jurados, quanto nos parâmetros de julgamento.

Fui, e ainda sou, criticado por muitos que acham que meu discurso é personalista e de visão reacionária aos princípios da criatividade. Nunca o foi. A verdade é que o mundo mudou, o consumidor também, o mercado idem, e algumas agência já entenderam isso e mudaram também.

Mas se tem uma coisa que parece não mudar nunca são as premiações.

Hoje, a grande maioria virou palco de egos e não de trabalhos e cases de valor. Quase todas não se preocupam em espelhar o que o consumidor, único ator no processo criativo de agências que, de fato, interessa, deseja, pensa e precisa.

Foto: Reprodução.

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Num mundo real, de gente real, de coisas reais, é inadmissível cair em artimanhas de cases ghosts ou feitos apenas para serem inscritos nos festivais e que, na verdade, não representam nada, a não ser uma ideia “duca” que alguém teve, e, para inscrever na premiação, escolheu um lugar, um espaço para executar e lhe dar legitimidade. Ou seja, o cliente é a própria agência e o consumidor não é real.

Pior, o Festival de Cannes parece ser o lugar ideal para colocar em prática essa percepção de Comunicação do nada.

Semana passada, em Cannes, em matéria que li no site português Meios e Publicidade, um iraniano fez a “casa cair” apenas implodindo a falsa ideia de que as premiações refletem tendências a serem seguidas.

Amir Kassaei, chief creative officer da DDB Worldwide disse o que muita gente tem vontade, mas, certamente, não tem coragem de dizer. Acho que nunca mais ele será chamado para ser jurado de Cannes, e, talvez, de nenhum outro prêmio.

Amir, assevera o seguinte: “Cerca de 90% dos trabalhos que vimos aqui esta semana e que foram feitos para ONGs e outras associações não foram feitos para ajudar aquelas pessoas. Foram feitos por alguém que quis ter uma grande ideia para enviar a um conjunto de 25 palhaços [a expressão usada foi shitheads] em salas escuras a verem e a apaixonarem-se por aquilo e darem um prêmio.”

Amir Kassaei.
Amir Kassaei.

Duro na colocação, e eu mesmo me senti um pouco de nariz vermelho ao lembrar algumas vezes em que isso aconteceu comigo, ele me deu um 10, colocando o tal case na mira de Leões e ouros. Não seria melhor dar um 8 e escrever a explicação do porquê.

O fato é que esses cases do ego chegam às universidades e enganam alunos que ao vê-los, os acham referência e vão sair de lá ainda achando que dá para fazer “criativosidades ufanistas num mundo real de clientes de baixo budget, onde o cliente não se engana mais com o que não lhe diz respeito.

Acrescenta Amir, consolidando muito do que penso, “Estamos aqui a enganar a nós mesmos ao premiar coisas que não têm qualquer ligação com a realidade. Todo mundo está falando sobre o que está mudando na indústria, mas ninguém fala do que nunca mudará. Estamos perdendo a ligação com o que importa: a realidade”, e continuou “Temos uma tendência de nos esquecermos dos nossos reais valores, dos motivos e da essência do que estamos aqui a fazer, do porquê de existirmos.”

“Caraca”, Amir, você leu meu pensamento. Senhores, perguntem-se o que nós estamos fazendo aqui? Dando prêmios para agradar pessoas, amigos e agências ou reconhecendo iniciativas de Comunicação que podem, de fato, resolver problemas de Comunicação e atingir gente real?

A resposta me parece óbvia, mas não é isso que acontece em júris cheio de gente que se acha o máximo e não se coloca no lugar do consumidor? Como a maioria se acha muito criativa, pensa – confesso que eu mesmo, às vezes: “Puta, que ideia genial, queria ter feito.”

Mas ninguém pensa: “Ideia muito boa. Será que atingiu, de fato, o público? Ela é exequível? Os resultados apontados são reais? Ou é mais um “kiropa” que ganhou todos os prêmios, mas ninguém sabe até hoje a marca do carro que pagou pelo comercial.”

“Vejo, indo de metrô para o trabalho, trabalhadores da construção, empregadas de lojas, gente trabalhadora que sai muito cedo de casa para  deixar os filhos na escola, antes de um dia longo. Aquelas pessoas não estão interessadas naquilo que fazemos. Não estão interessadas em publicidade. Não estão interessadas em marcas. E nós estamos nos esquecendo disso, porque nós perdemos o foco das pessoas reais…”, diz ele, falando que não estamos nos dando conta do grupinho que criamos para dar prêmios. Uma festa de amigos criativos.

Não há como contestá-lo, em essência, talvez em tese, porque o que ele fala, ainda que não seja verdade técnica, é verdade real para quem está nas ruas, na vida, nos pontos de venda.

E ele foi bem mais longe ao dizer: “Peguem a ideia mais inovadora que viram aqui esta semana e mostrem-na a alguém fora daqui, fora do Palais. Nem precisam sair de Cannes. Mostrem-na às pessoas reais que vivem aqui e vão ver se essa pessoa se importa com o que viu… Acreditamos tanto na nossa arrogância que acreditamos que o que estamos fazendo é importante para a vida das pessoas, mas não é. A nossa essência é fazer algo que importe na vida das pessoas, ligar pessoas às marcas e mostrar-lhes que aquela marca tem algo que pode melhorar a vida delas. Somos vendedores.”

Essa última sentença é cruel aos egos, mas é fato. Dil Mota já diz isso faz tempo. João Riva idem. “ SOMOS VENDEDORES!” Como tais, devemos levar às pessoas algo que importe a elas, que melhore suas vidas, algo com que possam interagir, algo que possam sentir como seu, feito para ela, ligar marcas a pessoas, fazendo com que elas façam sentido em suas vidas. Lembram dessa definição? Lembram. É o LIVE MARKETING.

Amir ainda diz que a “Razão para ter entrado nessa indústria não era querer ser famoso e ganhar prêmios. Era estar com pessoas fantásticas a ajudar os marketeers (um eufemismo, o mesmo que marqueteiro) a resolver problemas das suas marcas e melhorar a vida das pessoas. Esquecemo-nos disso, estamos mais cínicos e negativos. Ganhar prêmios só significa que somos bons em ganhar prêmios, nada mais que isso.”

É isso, hoje, é isso. Ganhar prêmios não quer dizer que se faça uma boa Comunicação. Quantas e quantas vezes você, como jurado ou profissional de mercado, viu cases, e coisas, estranhos ganharem prêmios em detrimento de trabalhos que encantaram o cliente e resolveram problemas de Comunicação, produzindo resultados impressionantes, mas que não são glamorosos e apresentados em filmes que mais parecem trailer de cinema?

Ele terminou dizendo: “Ou reconduzimos os nossos valores e os recuperamos ou morremos… Temos a responsabilidade de guiar os nossos clientes nesses tempos difíceis, mas não nos esforçamos para fazer isso, estamos a confundi-los, estamos a enchê-los de bullshit e a culpá-los por não perceberem nada e que nós é que somos os espertos.”

Phil Thomas não deve ter gostado nada da palestra dele no palco da Debussy, mas o fato é que foi aplaudido de pé por quem estava lá. De certo, não eram jurados ou organizadores do Festival, era gente de comunicação, talvez estudantes e gente comum que gosta de Comunicação.

Nós mesmos que julgamos no “Globes” precisamos analisar as palavras de Amir. Primeiro, porque o que ele defende é a realidade, a Comunicação viva da qual nós, promocitários, devemos ser defensores; segundo porque não dá mais para premiar dentro de critérios ‘criativosos’ em detrimento dos que indicam resultados efetivos na relação de marcas com seus consumidores.

Talvez seja a hora de incluir, junto com os doutos comunicólogos da academia e do mercado, um pouco mais de gente simples nos nossos júris. Quem sabe consumidores, os tais caras para os quais fazemos comunicação, estudantes e gente sem aquela vontade estranha de dizer “Ducarai… Uso da conectividade para se inserir no universo plural, e blá, blá, blá…” por gente que diga “entendi, isso faz sentido pra mim.”

E segue a vida nas telas do júri e nas ruas. Escolha onde quer estar.