Fake it until you make it

Os cases de Cannes 2025 trouxeram à tona uma desconfortável cultura de mercado

Com revisões de cases da DM9, LePub e a Africa em meio a campanhas infladas e dados falsos, o “Ano do Brasil” em Cannes deixou um gosto amargo na publicidade

O Brasil tinha tudo para ser o maior vencedor do Festival de Cannes de 2025: a edição deste ano foi a primeira a celebrar o setor criativo de um país — e nós fomos os primeiros a receber tal honraria.

“Tinha”, pois o que acabou se sobressaindo na cobertura da mídia especializada (e, num momento “fura-bolhas”, na imprensa geral também) foram os escândalos envolvendo ao menos três agências publicitárias de renome no mercado nacional. Mas, em meio a dados inflados, campanhas falsas e uso indevido — e irrestrito — de IA, há quem afirme que o que saiu na mídia foi apenas um holofote brilhando sobre um problema que vem ocorrendo há anos na escuridão.

O que aconteceu em Cannes 2025, de fato

cannes 2025
Imagem: Cannes Lions/Reprodução

De maneira curta e grossa, a Africa, a DM9 e a LePub venceram prêmios prestigiosos em Cannes 2025. A DM9 teve seus prêmios cassados e devolvidos (ao menos, aqueles relacionados à campanha problemática). Africa e LePub, no entanto, confirmaram investigações internas e posicionamentos de seus respectivos clientes (no caso da LePub, a marca em questão nem é mais cliente). A Africa, por meio de sua assessoria de imprensa, informou ao Promoview que seus prêmios foram mantidos.

O motivo: campanhas ou inexistentes, ou com dados grosseiramente inflados no intuito de atrair olhares dos jurados do festival.

O caso da DM9 foi o mais emblemático, justamente por ter escapado à especialização da imprensa que cobre o marketing, a publicidade e o brand experience e tocado em veículos mais gerais: a agência teve diversos prêmios (incluindo um Grand Prix, Ouros, Pratas e Bronzes) revogados ou voluntariamente devolvidos. Isso ocorreu após a descoberta de que conteúdo gerado por IA e manipulado foi utilizado para simular eventos reais e resultados de campanha em suas inscrições. As campanhas afetadas foram “Efficient Way to Pay” para Consul, “Plastic Blood” para OKA Biotech e “Gold = Death” para Urihi Yanomami.

Já a LePub, que conduziu a campanha “Followers Store” para New Balance e o São Paulo Futebol Clube, ganhou um Leão de Bronze, mas o prêmio está sob escrutínio por suposta falta de aprovação do cliente e alegações de desempenho não verificáveis. Pelo regulamento, todas as inscrições em Cannes exigem aprovação de seus clientes — uma falha que a LePub assumiu, afirmando que a campanha está sob investigação interna.

Finalmente, temos o caso da Africa, que admitiu ter inflado os números de uma campanha realizada para a Brahma e a startup de moradia Housi durante o Carnaval. A campanha, que venceu um Leão de Ouro na categoria de brand experience, afirmava ter instalado mais de 2.350 faixas em imóveis, com 42% mais retorno que a mídia tradicional. No entanto, apurações mostraram que o impacto real foi muito menor, com menos de 30 apartamentos em Salvador recebendo faixas por apenas um dia e uma compensação financeira inferior à prometida. A agência reconheceu o erro na apuração e divulgação dos dados, assumindo total responsabilidade e afirmando que o case foi elaborado sem aprovação da cliente Brahma.

Essa percepção não passou batida pelo jornalista Demétrio Vechiolli, do UOL: “me parece que é uma ponta do iceberg maior, sim”, ele comentou em uma conversa rápida com o Promoview. “No caso da minha apuração, eu encontrei quatro denúncias que, entendo eu, são graves, e pesquisei todas profundamente”.

O problema, além dos dados inflados, cases que não são bem cases e materiais não aprovados pelos clientes, não é apenas o fato das agências terem tentado contornar o sistema, mas sim que não se prezaram nem a se empenhar em disfarçar os engodos: “não é apenas o caso de alguém ter denunciado e eu ter investigado: eu abri as campanhas e vi que elas eram falsas. E foi fácil de descobrir. Eu acho que se pesquisarmos, acharemos várias mais”.

A minha apuração limitou-se a descobrir a veracidade – ou falta dela – nos cases, mas pelo que eu tenho ouvido de conversar com as pessoas do setor, me parece que isso acontece porque as agências estão buscando os maiores prêmios no menor trabalho possível. Quando abri o caso da Brahma e Africa, foi essa a percepção: o case foi montado para ganhar o prêmio, mas sem precisar ter custos além desse case. Em outras palavras, a campanha, na prática, não existiu. Poderia ter existido? Causado algum impacto? Sim, poderia, mas eles escolheram não causar nenhum impacto, o que é bem ruim para o mercado.

Demétrio Vecchioli, jornalista

Demétrio, que foi o responsável pelo furo de reportagem tanto do caso da Africa como o caso da LePub, acredita que esse será um paradigma de mudança para Cannes: “todos estão falando no assunto agora”, comenta Demétrio. “Eu acho que é obrigatório de eles repensarem, porque se não o fizerem, para o ano que vem não haverá desculpas, já era. O que passou, passou, a gente pode até tolerar, mas o que vier [a partir daqui], quem fizer isso nas próximas edições estará mais sujeito ao escrutínio público, e não poderá alegar que ‘todo mundo faz’, pois você estará sozinho. Ano que vem, todos serão obrigados a tomarem muito mais cuidado e, na pior das hipóteses, disfarçar melhor e correr o risco de, mesmo assim, ser pego.

Problema de cultura de mercado ou má fiscalização da organização?

Os casos listados acima não são exclusivos do Brasil (apesar de todos os detratores do “jeitinho brasileiro” se disporem em contrário no LinkedIn). A Ogilvy do México e a Grey Group de Singapura passaram por situações similares em 2010 e 2016, respectivamente.

Entretanto, há que se considerar a concentração de incidentes envolvendo agências brasileiras em 2025, que indicam uma combinação de pressões culturais no mercado que podem levar a comportamentos antiéticos e possíveis lacunas nos sistemas de verificação da premiação.

Mas até que ponto a “corrida pelo Leão de Cannes” é um problema apenas das agências, além da organização do evento em si?

“Há anos observamos que, na categoria de Brand Experience em Cannes, quem leva os Leões são majoritariamente agências ATL. Elas dominam a comunicação das marcas e, por isso, constroem narrativas que às vezes beiram a ficção”, afirma Cindy Feijó, CEO do Promoview. “É curioso notar que nenhum dos três cases hoje contestados foi publicado no Promoview quando alegadamente aconteceram. Isso reforça o nosso papel não só de valorizar o mercado, mas de documentar o que, de fato, foi entregue. Precisamos, daqui, seguir questionando, mesmo quando os nomes são grandes e o brilho parece inevitável.”

“É duro ver o ano em que o Brasil foi homenageado como país mais criativo terminar manchado por esses acontecimentos. Mas eu prefiro enxergar o copo meio cheio: agora o holofote está sobre o problema, e isso abre espaço para que as agências realmente especializadas em brand experience conquistem o protagonismo na sua própria categoria no festival”, continua Cindy. “Se o festival não repensar seus critérios, continuará premiando quem fabrica fantasia na nossa categoria. Temos muita investigação pela frente, mas torço para que, em 2026, o palco seja ocupado por trabalhos genuínos de experiência.”

Há que se considerar, também, que nenhuma das três agências comprometidas nas situações deste ano é, naturalmente, “de brand experience”. Inclusive, é possível argumentar que quase não há “agências de brand experience” na categoria de brand experience: neste ano, apenas uma brasileira do setor foi levada à shortlist, e, ao menos na história recente do festival, apenas uma veio a ganhar a competição.

A premissa do tradicionalismo e “fake it until you make it” se desenha sozinha quando se considera esse detalhe: agências grandes permeiam uma categoria que não é natural aos seus serviços, tomando o espaço das agências que, talvez, tenham materiais mais reais a apresentarem (por pertencerem ao setor) > agências grandes criam cases inflados para justificar a indicação > agências grandes ganha, pois só tem elas competindo.

Tudo vale em busca do Leão de Cannes, ainda que irreal ou questionável.

Ações de correção em Cannes 2025 são corretas, mas fazem pouco para solucionar uma crise cultural

Ao final de tudo, Cannes Lions, ao revogar prêmios e sinalizar maior rigor, está mostrando que reconhece o problema e busca fortalecer suas defesas. Entretanto, medidas anunciadas após o caso fazem pouco para coibir uma prática que, por todos os pontos de vista, é um “costume de mercado”.

Na prática, é o famoso “todo mundo faz, então eu faço também”. A diferença é que, em um ano onde o Brasil foi o primeiro a receber uma honraria estreante como o “país mais criativo do ano”, ver agências brasileiras — três das mais tradicionais, diga-se de passagem — serem implicadas em casos flagrantes de violação de regras é, como diz o começo do texto, um sabor amargo para engolir.

Rafael Arbulu

Redator

Jornalista há (quase) 20 anos, passeando por editorias como entretenimento, tecnologia e negócios, sempre com um olhar crítico e praticamente nostálgico. Por toda a sua carreira, sempre buscou detalhar desde as tendências mais disruptivas do mercado até as curiosidades culturais que desafiam a lógica do "só porque é novo, é melhor". Fã de vinis, cervejas especiais e grandes sagas literárias, ele traz para os textos doses generosas de referências pop – mas sem esquecer que, no universo corporativo, até o lado B precisa fazer sentido.

Jornalista há (quase) 20 anos, passeando por editorias como entretenimento, tecnologia e negócios, sempre com um olhar crítico e praticamente nostálgico. Por toda a sua carreira, sempre buscou detalhar desde as tendências mais disruptivas do mercado até as curiosidades culturais que desafiam a lógica do "só porque é novo, é melhor". Fã de vinis, cervejas especiais e grandes sagas literárias, ele traz para os textos doses generosas de referências pop – mas sem esquecer que, no universo corporativo, até o lado B precisa fazer sentido.