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Você já se sentiu invisível?

Dar visibilidade para protagonistas em datas marco é importante, são momentos de reflexão necessários, mas os outros 364 dias do ano precisam ser de oportunidades de vida digna .

*Por Samanta Lopes  

Há um vídeo no canal “Quebrando Tabu’’, inspirado na série “Carnival Row”, do Amazon Prime Video, que faz esta pergunta: “Você já se sentiu invisível?”. Durante o mês de março, há algumas datas que nos fazem refletir sobre alguns dos protagonistas do filme: uma mulher negra refugiada, um homem branco gay gordo, uma mulher trans e uma mulher negra cadeirante. Vale muito a pena assistir para conhecer.  

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A proposta do vídeo é colocar essas histórias nas ruas: as pessoas escutam os depoimentos, veem as fotos e deixam mensagens para cada um. Criando uma analogia com o cotidiano atual, muitas empresas aproveitam essas datas para fazer homenagens às pessoas protagonistas, que nem sempre no cotidiano são tratadas como tal, e colocá-las em destaque para ser parte de sua “identidade diversa’’. Infelizmente, não é algo reconhecido pela maior parte das pessoas colaboradoras das empresas.  

Pesquisas realizadas por consultorias ao redor do mundo mostram que a cultura organizacional das maiores empresas não tem planos de carreira voltados ao desenvolvimento dessas pessoas. Cargos e salários não são equiparados aos de executivos homens; os acessos às vagas vêm por força de cotas no geral; elas não ocupam cargos de gestão, e não há a inclusão delas nas metas estratégicas dos negócios. Geralmente, o clima interno é repleto de opressões, isolamento, piadas mal-intencionadas e desrespeito. 

Poucas empresas têm o cuidado de preparar essas pessoas levando em conta as defasagens nas habilidades e no conhecimento, devido à dificuldade de acesso e/ou permanência no sistema educacional.  

Março é um mês reflexivo para mim. Sou uma mulher negra, periférica, mãe, e vivencio desde pequena o quanto a sociedade nos nega acesso às coisas mais básicas como equipamentos de cultura, espaços como shoppings, caminhar nos mercados, sem que um segurança esteja de olho em cada passo que damos. Infelizmente, as piadas, os olhares e os termos preconceituosos nos seguem em todos os âmbitos de nosso cotidiano.  

Desde que percebi que, mesmo sendo negra, em algumas situações estou em situação de privilégio, como quando estou com outra mulher negra de pele mais retinta, ou seja, mais escura, e que minha “passabilidade” é maior do que a dela, faço esforços para divulgar suas atividades e apoiar para que as pessoas possam lhe dar oportunidades, por isso a conexão com o documentário do canal “Quebrando Tabu’’. 

Infelizmente, a falta de oportunidades é maior para pessoas retintas. Uma grande e querida amiga, chamada Flávia Diniz, traz vários elementos em sua interseccionalidade: é influencer no Instagram, mulher, ativista, negra retinta, carioca e tem uma doença rara que limita sua saúde e a sua mobilidade. Ela fez um manifesto e transcrevo aqui um pedacinho: 

“Nenhum dos feminismos me contempla, me reconhece. Nem a violência me reconhece. Nós mulheres PcDs sofremos de 3 a 8 vezes mais violência do que mulheres sem deficiência, e infelizmente não me vi em uma campanha” –, ela estava se referindo a 3 de dezembro, Dia Internacional da Pessoa com Deficiência.  

Trago esse relato porque geralmente a sensação de ser invisível é algo que nos permeia e conecta. Sempre que assisto ao filme por mim citado no começo deste texto, meu coração se torce e reconheço a mim mesma em várias falas, inclusive as da mulher trans e do rapaz gay gordo, porque nossos corpos nos antecedem, as pessoas nos leem antes de nos conhecerem, e isso nos define como um grupo invisível, sem direito de fala.  

Realizei algumas conversas recentemente para empresas que desejam implementar ações de ED&I. Em uma delas, um dos gestores perguntou sobre qual seria um verdadeiro benefício, além do assistencial, de contratar uma pessoa com deficiência para sua empresa, inclusive porque envolveria custos de adaptação dos espaços. Devolvi a pergunta com outra: qual seu objetivo em ser uma empresa inclusiva? 

Recomendo que apenas empresas conscientes de seu papel enquanto promotoras de uma cultura inclusiva, de formadoras sociais para novos mindsets, abram suas portas para receber pessoas dos grupos invisibilizados como negros, PcDs, LGBTQIA+ e multigeracionais, e, se optarem por realizar esse movimento, que preparem seu time interno antes de qualquer ação externa. 

O investimento será em pessoas – dentro e fora da empresa –, e adequações precisarão ser feitas na infraestrutura e nas políticas de desenvolvimento humano. Se não houver clareza sobre os resultados esperados, o envolvimento de todas as pessoas desde a portaria até a presidência, incluindo a cadeia de stakeholders e o alinhamento com as melhores práticas de gestão e governança, haverá uma grande chance de se criar um modelo de negócios que não tem a diversidade em seu DNA.  

Dar visibilidade para protagonistas em datas marco é importante, são momentos de reflexão necessários, mas os outros 364 dias do ano precisam ser de oportunidades de vida digna e com condições equânimes de acesso, para garantir que toda a sociedade tenha qualidade de vida, seja produtiva e sustentável.  

Vamos marcar um papo? Quero saber: qual é o seu objetivo em ser uma empresa com cultura inclusiva?